RELAÇÃO ENTRE CURRÍCULO, FORMAÇÃO E
SOCIEDADE PRESENTES NO FILME "QUASE DEUSES"
Ludemberg Pereira Dantas
Mauro Jakes Farias de Cruz
Mariza da Silva Cardoso
Em anos recentes, são várias as discussões travadas
no campo do currículo e sua relação com a construção de saberes e formação dos
sujeitos. Partindo do entendimento amplamente aceito hoje, de que a “formação” é
um processo complexo que ocorre em todos os lugares e aspectos da vida, desde o
nascimento no círculo familiar, até a cultura social do grupo em que se está
inserida e não somente nos espaços formais de ensino, torna-se necessário que o
conceito tradicional de currículo seja repensado e analisado de forma profunda,
levando em consideração a relevância de outros fatores envolvidos no processo
de formação, como por exemplo, a relevância dos saberes construídos culturalmente
nos mais variados âmbitos da vida humana.
O objetivo deste
presente trabalho será fazer uma conexão entre a Teoria Crítica do Currículo em
Giroux (1997) e a relação com as questões de educação, currículo e sociedade
presentes no enredo do filme Quase Deuses.
Lançado no ano de 2005,
o filme Quase Deuses, de produção de Joseph Sargent trás no seu bojo várias
discussões de grande relevância social e de cunho sociológico. A trama se
desenrola na década de 1930, período de intensa crise da conjuntura política e
social do mundo mergulhado na II Guerra Mundial.
Além de trazer à baila questões como a
segregação racial, preconceito feminino, a tensão do ambiente científico de
pesquisa e o recorte histórico de uma das maiores crises vivido pelo sistema
capitalista, entre outras, o filme provoca uma reflexão profunda sobre o
Currículo na educação superior, sua importância e funcionalidade na formação e
constituição do sujeito enquanto profissional capaz.
Narrando a história
real de Vivian Thomas, um homem negro que sempre enfrentou dificuldade em decorrência
do preconceito de raça e que almejava com todas as suas forças entrar na faculdade
de medicina, o filme coloca em questionamento até que ponto os conhecimentos
organizados em disciplinas estanques no currículo oficial dos diversos cursos
de formação acadêmica são mesmo “indispensáveis”, “necessários” e “suficientes”.
O filme trás essa
discussão em torno do currículo velada em todo o seu roteiro, ao demonstrar
como Vivian Thomas, um homem de grande Inteligência, extremamente autodidata e
possuidor de habilidades incríveis, encontra emprego como zelador no
laboratório do Dr. Alfred, um médico de renome, especialista e pesquisador na
área de cirurgia torácica e traumas no coração e pulmão. Logo as diversas
habilidades e qualidades de Vivian chamam a atenção de Dr. Alfred que decide
inseri-lo no ambiente de pesquisa e experimentação de técnicas inovadoras de
cirurgias cardíacas em cães. De forma surpreendente, Vivian que já possuía conhecimentos
e técnicas pré- adquiridos na sua experiência de vida (currículo oculto),
absorve-se ainda mais pelo conhecimento científico e lançando mãos dessas
habilidades desenvolvidas desde a sua infância (com o pai carpinteiro) torna-se
técnico auxiliar e assistente de cirurgia de Dr. Alfred, chegando mesmo a
superá-lo na elaboração e estruturação dos esquemas dos procedimentos adotados
nas incisões cirúrgicas. Apesar de ter sido a peça principal na execução da
revolucionária técnica da primeira cirurgia cardíaca de peito aberto, mais
popularizado na história da medicina como a cura da Síndrome do Bebê Azul, o
filme mostra em todo o seu roteiro a luta de Vivian pelo reconhecimento dos
seus conhecimentos e contribuição no meio da academia científica e médica. O
fato de nunca ter frequentado uma universidade e não ter o título de Doutor faz
com que todo o mérito obtido pelo sucesso da técnica adotada na cirurgia,
método que teve como principal mentor o próprio Vivian, seja na verdade
atribuído ao Dr. Alfred, fato que deixa Vivian Thomas completamente
decepcionado. Finalmente, apenas depois de muita luta, no fim do enredo seus
conhecimentos e méritos são reconhecidos e é concedido a ele o título honorário
de Doutor.
De forma profundamente
sensível, a história de Vivian Thomas coloca em cheque a relevância e
significado dos conhecimentos organizados nos currículos empregados e colocados
como essenciais nos diversos cursos de formação. Todos os “doutores” que
apareceram na história narrada foram surpreendidos com um simples homem que
jamais havia estado no universo acadêmico de uma sala do curso de medicina, e
que, apesar disso, revolucionou o campo médico e por que não dizer a história
mundial da medicina. Isso faz-nos questionar sobre se os conhecimentos em torno
do repasse e assimilação de “conceitos” e “técnicas” frias e sem conexão com a
vida prática não seriam o fator determinante na má formação dos sujeitos
profissionais e sociais.
Percebe-se, que a
aprendizagem do jovem Vivian, se deu fora do que estava estabelecido no
currículo do curso de medicina e da estrutura da faculdade. Demonstra que neste
caso, o professor subverteu as normas do currículo, o que, segundo Giroux
(1997), as “ideologias instrumentalistas”, muitas vezes ameaçam a autonomia do professor,
deixando de contextualizar a realidade e de potencializar a capacidade do
aluno.
O potencial do jovem,
reconhecido pelo professor, confirma o quanto a contextualização da prática
educativa favorece a descoberta de novos conhecimentos, confirmando o que este
autor determina os professores como “intelectuais transformadores”, (Giroux,
1997), que tem a capacidade de provocar transformações tanto na sua metodologia
de ensino, no contexto de sua escola, bem como na sociedade, quando este
desenvolve uma prática reflexiva.
Retomando a história
real apresentada no filme “Quase Deuses”, entende-se o quanto a prática daquele
professor e do estudante provocou transformações importantes naquele contexto.
Uma vez que o índice de morte de crianças naquele país por causa dos problemas
cardíacos era alarmante, e diante do estudo dos dois pesquisadores, esta
realidade foi modificada.
A prática deste
professor além de romper com os padrões estabelecidos pela universidade quebra
o preconceito vivenciado pelo jovem Vivian, por ser pobre, negro e por não ter
passado pelas aulas da universidade. Todavia seu aprendizado transforma aquela
realidade de preconceito, descriminação, dentre outros fatores.
Outra afirmação
importante de Giroux (1997) é quando ele diz que “o ensino não pode ser reduzido ao simples treinamento de habilidades
práticas, mas que, em vez disso, envolve a educação de uma classe de
intelectuais vital pra o desenvolvimento de uma sociedade livre,”. Assim
sendo, a educação tem um papel importante no processo de transformação das
pessoas, independentemente da cor ou classe social. Ela precisa ser
experimentada sempre na perspectiva de que todo tipo de ideologia dominante ou
de opressão seja quebrada.
Em
consideração as teorias de Henry A. Giroux em “Professores
como intelectuais transformadores (1997)” percebe-se a grandeza do professor diante o seu papel de ensinar. No
filme, é perceptível que um orientador não pode se recusar a receber estímulos
para desenvolver habilidades em seu aluno, uma vez que Vivian não detém de uma
formação acadêmica necessária para a prática da medicina, e o Dr. Alfred
percebe a grandeza intelectual presente no carpinteiro, vinda de muito estudo e
dedicação. Isso remete a ideia de que é necessário acreditar no potencial do aluno,
uma vez que ele está disposto a aprender e produzir, e recebendo orientações,
investimento e credibilidade, se tem grandes resultados.
Quando Giroux defende que o professor tem que
desenvolver-se com suas habilidades, sua intelectualidade percebe-se que o
crescimento do aluno e seu aprendizado estão além das concepções teóricas, além
dos parâmetros exigidos nos currículos tradicionais. Segundo ele:
Primeiramente, eu
acho que é imperativo examinar as forças ideológicas e materiais que têm
contribuído para o que desejo chamar de proletarização do trabalho docente,
isto é, a tendência de reduzir os professores ao status de
técnicos especializados dentro da burocracia escolar, cuja função, então,
torna-se administrar e implementar programas curriculares, mais do que
desenvolver ou apropriar-se criticamente de currículos que satisfaçam objetivos
pedagógicos específicos. (1997)
Sendo
assim, o filme “Quase Deuses” vem
“quebrar paradigmas”, uma vez que um simples carpinteiro é referenciado com sua
determinação, persistência e competência. Uma ideologia prática e imediatista
chega para afirmar que é possível ir além das teorias exigidas. Não
necessariamente Vivian se concretizaria como capaz, se somente tivesse passado
por todas as etapas de aprendizagens curriculares, como a conclusão do ensino
médio, com estudo da Literatura até a conclusão da graduação acadêmica. Esse
exemplo, real, chega para afirmar que os currículos escolares não
necessariamente devem ser seguidos à risca, uma vez que o aluno tem capacidade
nata de ir além das imposições, dos objetivos específicos.
Um filme
extremamente emocionante, de uma realidade que chega para afirmar que é
possível e necessário acreditar na educação, no seu crescimento e
aperfeiçoamento, com uma sociedade mais justa e igualitária. Com alunos cada
vez mais “críticos e reflexivos”,
como afirma Giroux, e os professores como “intelectuais transformadores e reflexivos”.
GIROUX, Henry A. Os Professores
Como Intelectuais.Porto Alegre: Artmed
Editora, 1997