sexta-feira, 23 de março de 2012

Autobiografia e Romance Autobiográfico: Uma análise da criação literária em “Memórias de um sobrevivente” – Luiz Alberto Mendes


Autobiografia e Romance Autobiográfico: Uma análise da criação literária em
“Memórias de um sobrevivente” – Luiz Alberto Mendes

Dagiza Nazaré [1]
Edson de Paula
Luciana Oliveira
Ludemberg Dantas
Taize Mergulhão

Marielson Carvalho[2]


Resumo: Este artigo tem como propósito discutir e analisar a narrativa de “Memórias de um sobrevivente”, em que o autor Luiz Alberto Mendes se vale de elementos fictícios e factuais, embasados numa escrita memorialística para contar a sua trajetória no mundo do crime desde a sua infância nos anos 50 até a idade adulta, quando já influenciado pelos livros, inicia sua carreira de escritor. A discussão sobre a obra de Luiz Alberto Mendes no panorama literário enseja uma necessidade de se repensar a autobiografia e suas representações.


Palavras-chave: Luiz Alberto Mendes, gênero literário, fato, ficção, memória, testemunho.


1.                 Introdução

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma leitura da obra Memórias de um sobrevivente (MENDES, 2001), de Luiz Alberto Mendes, a partir do gênero autobiográfico levando em conta algumas considerações sobre a posição do sujeito na produção de narrativas autobiográficas.
            Narrativas como Autobiografias, diários, testemunhos, memórias e todo universo que envolve a escrita confessional, por muito tempo foram consideradas menores, periféricas, distanciadas das “altas literaturas”, somente a partir do século XX, essas escritas saem das periferias para o centro dos estudos literários e ganham destaque nas livrarias e nas listas de livros de “ficção” e “não ficção”.
Em Memórias de um sobrevivente, a narrativa sobre experiências carcerárias adotada por LAM[3] que viveu e sobreviveu à traumática rotina da prisão contem dados da realidade vivenciada por ele, porém seu enredo é permeado por traços fictícios conduzidos pelo imaginário do autor, ao ponto que se torna possível uma reflexão a respeito da impossibilidade de construção de um único conceito para definir as autobiografias. 
Partindo desse ponto e abordando as idéias de alguns autores, buscaremos expor as semelhanças e divergências existentes entre romance autobiográfico e autobiografia, identificando as possibilidades de escrita do texto autobiográfico.
Por meio deste estudo, procura-se a partir da ótica do narrador-personagem, entender a trajetória desse escritor que transita entre fronteiras da autobiografia e romance autobiográfico, memória e testemunho, trazendo em seus escritos elementos que provocam no leitor uma inquietação em relação ao que pode ser considerado como fato e o que pode ser considerado como ficção em Memórias de um Sobrevivente.


2.                 Autor e obra

Em 2001, LAM publicou seu primeiro livro, Memórias de um sobrevivente, pela Companhia das Letras. Mendes narra uma parcela de suas memórias em quase 500 páginas sendo que a sequência memorialística se dá em Às cegas, também publicado pela Companhia das Letras, em 2005. De sua lavra também é possível verificar a obra Tesão e Prazer: memórias eróticas de um prisioneiro, publicada pela Geração Editorial no ano de 2004.
LAM nasceu em 04 de maio de 1952, em São Paulo, onde vivera a maior parte de sua vida, definindo sua infância nestes termos: “Dona Eida, minha mãe, dizia que até os seis anos eu era um santo. Meu pai, seu Luiz, dizia que eu era um débil mental” e “Depois, fui para a escola. Dizem que de santo virei diabo” (MENDES,2001, p.9). Correlacionando sua vida com a sua narrativa, o autor enfatiza o amor de sua mãe e a violência doméstica que sofria pelas mãos de seu pai, desempregado e alcoólatra, um dos motivos que o levariam a fugir para a rua pela primeira vez aos 12 anos de idade. Quando na rua, relata ter conhecido os prazeres da vida, dentre eles, prazeres ilícitos, período em quê começaram e por que começaram os furtos em sua própria casa, a partir de quê tornara-se punguista e ladrão. Decorrente dos crimes que praticara esteve no RPM, Recolhimento Provisório de Menores, uma espécie de FEBEM da época, passando por várias cadeias em sua trajetória marginal. Iniciara uma nova modalidade de contravenção, o assalto, que o levara a matar um homem, sendo que estes fatos aconteceram antes dos dezenove anos.
Tendo em vista tratar-se de um presidiário escritor e não um escritor presidiário, LAM conta sua história de vida a partir da ótica criminal. Como num processo constante de reflexão sobre si e sobre a sociedade da qual faz parte, o autor adota uma postura crítica sem eivar-se com resquícios de autocomiseração, contrariamente, discorre livremente sobre suas preferências e sua postura avessa à valoração moral instituída, adotando, ao invés desta, a postura moral do crime, a lei das ruas, o código de honra dos “malandros”, o que, diferentemente do que se pode especular, apresenta uma dimensão altruísta e humanitária, tal como elucidada nesta passagem:

Quando entrava algum malandro conhecido no xadrez, os arruaceiros respeitavam. Tinham mesmo medo. Conheci alguns deles. Quando me viram ali, menino e todo machucado, procuravam falar comigo, curiosos. Muitos me aconselhavam que voltasse paa a casa de meus pais, diziam que aquela vida de malandragem não pagava a pena, que sofreria muito nas mãos da polícia etc.
Era levado por todos qual fosse uma criança. E eu era mesmo infantil. Meu comportamento, minha voz, tudo era de menino. Malandro, em sua maioria, costuma gostar de criança e respeitar. [4]

            Mendes proporciona uma mudança de cosmovisão, de sua própria condição de relegado pelo sistema opressor e transcende às grades que o oprimem tal como falam os Racionais Mc’s em seu Salve: “Eu vo mandá um salve pra comunidade do outro lado do muro/As grades nunca vão prender nosso pensamento, mano!”[5]
Levado pela tortura carcerária, o autor passa então a frequentar a cela forte, onde permanece em castigo por nove meses, sem nenhum contato físico e humano. Até então, LAM descobre que é possível uma comunicação externa, via privada, o qual descobre outro companheiro, o Henrique, que lhe cumprimenta, de outra sela forte vizinha, e passam então a trocarem confidências. Assim, é criado um vínculo de amizade entre ambos, passando então, a se refugiarem de um possível trauma psicológico. Nas conversas, Henrique apresenta a Luiz o mundo das palavras, através dos livros. O interesse em LAM é constante, quando vê que o novo amigo apresenta-se de um teor literário surpreendente, no momento em que lhe falava de romances que lera, citava versos, trazia-lhe indagações, vinda de uma filosofia que o narrador até então não ouvia falar. Com isso, o narrador de Memórias de um sobrevivente passa então a deparar-se diante um novo mundo, com mais significação para a sua existência, mesmo estando ele em castigo de regime fechado.
Assim, LAM se firma na necessidade em construir uma nova realidade para sua história de vida. Tido como um autodidata, apesar de ter vindo de uma origem humilde, com pai e mãe sem instruções, analfabetos, e o próprio com uma bagagem apenas das séries inicias, até então seu contato com a leitura não era valorizada. Com o passar de todo o trabalho, discutiremos o quanto que a literatura transforma a vida desse homem que não teve em sua liberdade, a oportunidade, ou mesmo, a necessidade em viver melhor, sem torturas de cunho policial, e sim, digno de sua real libertação: o seu autoconhecimento.
                                              
“Fui me apaixonando por livros. Lia, em média, oito a dez horas por dia. Comecei com os romances. Li todos os clássicos como quem devora o prato mais saboroso. Era extremamente gostoso, um prazer especial, diferente. Não estava mais tão só, as histórias, os personagens ficavam vivos para mim num passe de mágica. Só que, a cada livro terminado, dava uma angústia, um aperto no coração que jamais consegui explicar. Era livro atrás de livro, meu mundo se ampliou de tal modo que às vezes dava pane mental pelo acúmulo de informações”. [6]


3.                  Memória e Testemunho

Partindo do viés de que a “literatura de testemunho” vem ganhando maior evidência nos meios acadêmicos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, devido ao advento dos Estudos Culturais, percebemos que a obra de LAM[7] salienta alguns pontos precípuos à discussão deste gênero, tendo em vista existirem grandes tensões na crítica brasileira quanto ao valor estético das obras escritas sob a égide do testemunho, de acordo com o que enfatiza Jaime Ginzburg em seu estudo Linguagem e Trauma na escrita do Testemunho:

“... o estudo do testemunho articula estética e ética como campos indissociáveis de pensamento. O problema do valor do  texto, da  relevância da escrita, não se insere em um campo de autonomia da arte, mas é lançado no âmbito abrangente da discussão de direitos civis, em que a escrita é vista como enunciação posicionada em um  campo  social  marcado  por  conflitos,  em  que  a  imagem  da  alteridade  pode  ser constantemente colocada em questão.”[8]

É importante salientar a necessidade de epigrafar o conceito de memória quando nos remetemos à discussão em questão. Para Bergson, “toda memória é consciência”[9] motivo pelo qual verificamos que a memória se caracterizará como elemento constante da retenção do passado no presente, ou seja, que esta relação entre os tempos é parte essencial na constituição das vivências do sujeito enquanto si mesmo, na atitude especulativa do relembrar. A memória possui outro valor importante que se constitui como fator preponderante para as elucubrações quanto ao tempo já vivido, implicando, além de uma atitude reflexiva do processo interior de formação do sujeito, a perspectiva da função social abarcada no ato rememorativo, tomando por base o arcabouço oferecido pelo tempo em que se está vivendo.
Em Memórias de um Sobrevivente LAM apodera-se do ato memorialístico para lançar seu testemunho à humanidade, numa atitude que, mesmo auto-intitulada individualista[10], proporciona um melhor juízo do lapso temporal a que está inserido o tempo da narrativa. Concomitantemente, vemos o ato testemunhal como modo interior para uma reestruturação do ser quanto ao seu passado e suas experiências no entendimento e na (res)significação destes[11].
Observado o cunho existencial da literatura de LAM, da imprescindibilidade de suas experiências, é nítida a propositura bradante que a obra tende a apresentar, visto elucidar os bastidores do sistema prisional brasileiro à época da ditadura militar, além de toda a formação sócio-cultural da sociedade periférica paulistana, por que não dizer, toda a formação familiar deste lócus exemplificado.  Segundo Penna, os ideais nacionalistas habitualmente elegem uma identidade fixa e unitária, deixando à margem segmentos tomados como periféricos. Neste caso a voz testemunhal não faz referência a um caráter universalizante, mas a uma posição específica, a uma perspectiva contrária ao discurso do Estado segregacionista[12].
Tendo por base os conceitos de memória e testemunho, vislumbramos ser altissonante o brado de Memórias de um Sobrevivente, posto que, ao compartilhar o seu passado, o autor lança um esclarecimento sobre um período funesto da história de vida do mesmo além de atuar como representante de outras vozes caladas pelo sistema repressivo a que estão subjugados e a partir do qual foram formados, como o mesmo relata:

Estávamos presos, [...], passáramos três meses de torturas imensas, agora tudo terminara. O sofrimento havia sido o máximo, envelhecêramos: com exceção do Alemão, estávamos todos com cicatrizes e marcas no corpo e na alma. Ficariam para sempre. Algo fora destruído em nós. Pelo menos o que ainda nos restava era humanidade, pureza e inocência. Agora éramos cobras criadas. O ódio em nós era o mais virulento possível.
Estávamos cientes do que aqueles que nos barbarizaram o fizeram em nome de uma sociedade. Uma sociedade que nos repelia, brutalizava, segregava, e que quase nos destruía.[13]


4.                 Relação entre autobiografia e biografia

A autobiografia é um dos gêneros que tem tido mais aceitação e crescimento nos últimos tempos. Junto com a quantidade e tipos de autobiografias, vem o seu questionamento acerca do seu teor literário e a dificuldade em definir esse gênero que transita e se complementa na fusão com outros gêneros.
Segundo Philippe Lejeune, que discorre sobre a complexidade do tema em O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet, para que uma obra seja considerada como tal, é preciso que exista uma identidade entra autor, narrador e personagem principal. É o que ele denomina de pacto autobiográfico. A autobiografia, além disso, tem que ser um relato retrospectivo, contar a história de uma pessoa e em prosa.
Lejeune salienta que a principal diferença entre uma autobiografia e biografia é que, nesta não há identidade entre narrador e personagem principal, porém, é sabido que muitas autobiografias são escritas com a colaboração de outra pessoa (os nègres). De acordo com o escritor francês essa modalidade de escrita autobiográfica traz à tona a fragilidade de identidade entre o “eu” do narrador e do protagonista:

Esses livros não são, na realidade, condenados por sua inautenticidade, mas porque entregam o ouro ao bandido, e lançam uma suspeita, talvez legítima, sobre o restante da literatura. Sob certos aspectos, a autobiografia dos que não escrevem elucida a autobiografia dos que escrevem: o erzatz revela os segredos de fabricação e de funcionamento do produto 'natural’. [14]

Livros como Memórias de um sobrevivente não escapa a esse desdobramento que o assunto assume por esse viés, uma vez que, ao escrever sobre sua vida, possivelmente a autor agiria como uma segunda pessoa. Essa situação de divisão de trabalho da escrita apenas confirma o processo natural e complexo que está em jogo em toda a forma de escrever. Nas palavras de Lejeune:

Ao isolar relativamente os papéis, a autobiografia em colaboração questiona a crença que, no gênero autobiográfico, subentende a noção de autor e a de pessoa. Só é possível dividir o trabalho porque, de fato, ele é sempre dividido, mesmo se os que escrevem o ignoram, uma vez que assumem os diferentes papéis. Toda pessoa que decide escrever sua vida se comporta como se fosse seu próprio nègre. [15]

Se analisarmos por essa perspectiva, não seria muito dizer que de certa forma LAM ao contar sua história, em alguns momentos intervém na própria escrita, ainda que inconscientemente. Essa segmentação de tarefas na produção da escrita constata a complexidade de fatores que o “eu” que escreve, julga e considera importante ou não revelar. “Longe de imitar a unidade da autobiografia autêntica, ela ressalta seu caráter indireto e calculado. Somos sempre vários quando escrevemos, mesmo sozinhos, mesmo nossa própria vida.” (Lejeune, 2008, p. 118).
A discussão sobre a autenticidade dessas obras surge dessa relação “contratual” que é possível encontrar em ambos os casos.  Essa situação de divisão de etapas de uma biografia ou autobiografia desencadeia outra mais complexa, ou seja, leva ao questionamento da verdade, da autenticidade de obras que de fato até podem ter sido escritas pelo protagonista da história, mas, essa pessoa ao escrever acaba por uma metodologia de escrita escamoteada, escolhendo o que é ou não favorável para revelar sobre sua vida e personalidade.
Em sua dissertação de mestrado “Do factual ao ficcional: memória, história, ficção e autobiografia nas Memórias de um sobrevivente” (2007), Adauto Locatelli Taufer discorre sobre a dificuldade e divergência de vários teóricos em delimitar o gênero autobiográfico. Um dos pontos que geram essa divergência que implica no quesito verdade, autenticidade é o embate entre o discurso histórico e ficcional presente na obra. Ora ele apresenta um relato retrospectivo, calcado na sua memória, de fatos, episódios de um determinado período. Ora ele ao se valer de sua memória, o “eu” do presente ao tentar contar e entender a sua vida, não deixa de por impressões pessoais e subjetivas que interferem na descrição da realidade. Porém, ele afirma que é dessa tensão entre factual e ficcional que a literariedade se manifesta no gênero:

Como podemos observar, o texto que se pretende autobiografia é capaz de gerar um largo material de pesquisa, adentrando em toda uma teoria específica de narratologia. Além disso, precisamos registrar que o gênero autobiográfico se mantém como tal pelo fato de se ancorar em uma tensão constante entre o discurso historiográfico, aqui encarado no sentido de recapitulação de um determinado bloco temporal, e o discurso literário, no qual se evidenciam os elementos da literariedade. [16]

Em meios a muitas cogitações, Lejeune sugere que uma das possibilidades para amenizar esse conflito de autoria, seria o nègre (verdadeiro autor de obras assinadas por outrem) intervir, mas, por uma relação interpessoal de diálogo e em seguida desfazer essa intervenção, transformando-a como se fosse própria e proveniente do modelo, protagonista da história.


5.                  Relação entre autobiografia e romance autobiográfico

            Levando-se por seu testemunho, suas memórias, LAM se mostra um escritor que apresenta suas verdades, seus valores como ser humano, no momento em que usa de suas afirmações, para oferecer uma literatura convidativa e transformadora. O romance autobiográfico, no qual LAM é protagonista, é uma narração em primeira pessoa em que se misturam ficção e realidade, com uma relação de identidade entre autor, narrador e personagem.
Na autobiografia leva-se em consideração que o autor estará vivo, então é provável que sua escrita seja em vistas ao passado, pois seu futuro ainda é incompleto, desta maneira há uma relação do “eu” que vivenciou ações passadas e o “eu” que narra essas ações, sendo este considerado autodiegético, ou seja, narrador protagonista da história. Ele levara em consideração a memória, as lembranças, utilizando da primeira pessoa gramatical.

Ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido à infinidade de coisas que aconteceram, estão acontecendo ou vão acontecer no mundo real. (...) Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana.[17]

Tudo isso será um material que poderá proporcionar uma pesquisa histórica em larga escala para quem ler, porém, quando se escreve de si, tendo em vista um gênero autobiográfico, pois LAM tenta unir ficção e realidade, ancorando ao leitor a ideia de realidade inalterável; isso não deixa de ser uma jogada é claro, pois falar a si próprio de sua vida passada revela dores, saudades, amor, em fim. Imprescindivelmente na mente, é muito e objetivo, porém a escrita dispõe de outro poder, o do realce, quando se escreve, as sensações são aumentadas, tudo triplica e a angustia encobre a verdade que realmente é latente. Para Lejeune:

Pertencem à categoria do romance autobiográfico todos os textos funcionais nos quais o leitor tem razões para acreditar na identidade de autor e de personagem, ainda que o próprio autor tenha negado ou não afirmado essa identidade. Ele afirma-se como sendo verdadeira, presa à realidade extratextual, e o foco narrativo de primeira pessoa é o mais adequado à objetividade e à busca da verdade. [18]

Há um novo universo metafórico para isso, tudo é fantasiado, sendo assim um produto literário, indo além do indizível, pois quando se escreve de si, penetra-se o obscuro e primitivo de si, isso se torna romance, não sendo distinção o que deve procurar e sim a ponte para rever as entrelinhas da escrita da obra, pois a veracidade provavelmente não estará presente, o que é real ou não, não importa, o que importa é a beleza com que se fala desse real.
Assim, é levado em consideração, a relação entre autobiografia e romance autobiográfico, percebendo que ambos apresentam características das quais a realidade e a ficção estão presentes, envolvendo uma literatura capaz de garantir uma visibilidade entre um ser real, do qual narra suas memórias e um ser ficcional, que é antes do possível, imaginário.
A partir do momento que o autor passa a relatar momentos de vida de seus companheiros, que participaram também do “mundo marginal”, é representado como uma característica do romance autobiográfico, ao criar também memórias para seus personagens:

À Tarde, chegaram os menores que trabalhavam nas lavouras externas à prisão. Estavam sujos, suados, queimados de sol, muito fortes, autênticos trabalhadores braçais. Reconheci o Baiano Boca-Murcha do Brás. Depois o Zolinha da Bela Vista, que era meu inimigo desde que nos conhecêramos no centro de São Paulo. [19]

            A narrativa de Memórias de um sobrevivente é representada por um depoimento onde o narrador se depara com a responsabilidade de preparar uma escrita referenciada, não que seu testemunho seja propício, entendendo-se que sua história pode ser interessante ou não, mas, tendo a sensibilidade de oferecer ao leitor a oportunidade de envolver-se em suas experiências, percebendo então, a superação de um ser que teve em seu “eu” um percurso de sofrimento, incertezas, mas que diante as possibilidades, encontra sim um refúgio e uma merecida libertação.
Portanto, não só a autobiografia, como também o próprio romance autobiográfico contribuem para que a escrita do eu narrador, seja fixada com uma literatura sem conclusões determinadas de si, a ponto que o jogo da ficção não se ausentará de toda uma história, vivida ou imaginária.


6.                 Fato e Ficção

Para se pensar o sujeito na narrativa autobiográfica faz se necessário uma comparação com a narrativa fictícia para que se possa observar até que ponto a escrita autobiográfica está desprovida de conteúdo ficcional.  A narração fictícia se distingue da autobiografia por não fazer referência a uma “realidade” da vida do autor. As duas narrativas têm em comum a busca do auto-reconhecimento nas experiências vividas, na qual a primeira é feita pelo próprio autor, enquanto a segunda está pautada na subjetividade de um personagem fictício onde o “eu” que narra não é o “eu” que age.
            Memórias de um sobrevivente hesita entre ficção e realidade. Esse movimento entre um gênero e outro atribui a obra um valor literário, uma vez que seu texto vai além das estruturas aparentes pondo em questão a posição do autor e do leitor. Para Philippe Lejeune, ainda que o sujeito escreva sua autobiografia na tentativa de se ver melhor, continua a se criar, assim, estabelece um novo delinear de sua história e identidade.
 Partindo do pressuposto que a autobiografia visa uma veracidade em que os fatos assumem um compromisso com a verdade, um dos problemas que surgem é até que ponto o narrador-autor-personagem diz a verdade ao falar de si. Philippe Lejeune argumenta em seu estudo acerca da impossibilidade do alcance total sobre a realidade, mesmo com a proposta do autor sobre a legitimidade de sua narrativa.

A promessa de dizer a verdade, a distinção entre verdade e mentira constituem a base de todas as relações sociais. certamente é impossível atingir a verdade, em particular a verdade de uma vida humana, mas o desejo de alcançá-la define um campo discursivo e atos de conhecimento, um certo tipo de relações humanas que nada tem de ilusório.”[20]

            De acordo com o posicionamento do autor, é possível perceber que ao narrar torna-se impossível uma imparcialidade ou completude, uma vez que ao fazer uma retrospectiva de sua historia de vida o escritor se da conta de que a sua verdade é passível de alterações, dessa maneira busca caminhos que lhe apontem outras verdades. Em Memórias de um sobrevivente ficção e realidade mantém uma linha tênue difícil de identificar ou estabelecer fronteiras entre o real e o imaginário.
Em sua narrativa, LAM assume o papel do sujeito da enunciação e sujeito do enunciado, o narrador-protagonista reavalia e dialoga com o seu passado, reorganizando os acontecimentos vivenciados ao tempo que elabora o discurso seguindo a sua perspectiva atual sob um recurso narrativo que une o real e o ficcional em um mesmo propósito: a reconstituição do passado a partir de um posicionamento crítico que lhe possibilite um novo olhar sobre si.
Embora o escritor afirme em sua obra uma totalidade de verdades, é possível perceber que em sua narrativa tudo se mistura, em Memórias de um sobrevivente, Luiz Alberto desenvolve e registra acontecimentos densos, aventuras cinematográficas e experiências arriscadas do seu cotidiano de maneira tão intensificada que desperta o interesse e curiosidade do leitor:

Fizemos meia-volta em ré, e quando Sergio colocava em primeira marcha, a viatura postou-se bem na nossa frente, só deixando uma brecha mínima para que passássemos. Os soldados desceram com suas metralhadoras e rifles embalados e toaram posições de tiro para nos liquidar. Alemão e Sergio, no banco da frente, ficaram sem saber o que fazer. Eu no banco de trás , como se fosse reflexo condicionado, peguei uma arma em cada mão e apontei para os policiais, pelo vidro da frente mesmo. Quando alemão abaixou-se, apertei os gatilhos e soltei todas as balas na direção dos soldados. Não podíamos ser pegos. Estávamos em flagrante de latrocínio, o pior dos crimes, eu sabia.[21]

É importante ressaltar também que ao buscar vestígios dos fatos na memória é resgatada a possibilidade de liberdade do imaginário, que acrescenta aos fatos seleção de elementos fictícios que conferem a história um embelezamento dos episódios vividos pelo narrador. Nesse ponto implanta-se a duvida quanto à veracidade dos eventos narrados.
Em busca de um passado memorialístico LAM cria de si uma imagem que promove uma dualidade entre o real e ficcional pondo em questão a idéia de verdade absoluta. O escritor reflete em seus relatos suas visões de mundo acrescidas de contornos estéticos em que a realidade associada ao imaginária propicia uma escrita hibrida, pois na medida em que narra sua trajetória de vida buscando compreendê-la e interpretá-la, constitui situações que reafirmam em sua obra, o caráter ficcional


7.                Considerações
 
A intenção desse trabalho foi mais demonstrar a relevância da obra de LAM no contexto literário, às questões que a narrativa do escritor suscita quanto ao gênero do que um mero enquadramento do livro num determinado gênero apenas. Até porque parece-nos que sua escrita pauta-se pelos elementos que lhe conferem um tom autobiográfico e ficcional.
O narrador de Memórias de um sobrevivente busca em suas lembranças e imaginação a matéria que constrói sua história. E ao resgatar essas reminiscências inexoravelmente o narrador/ficcionista adultera um pouco o que ele supõe como totalmente verdadeiro.
LAM ao conhecer as pessoas que o iniciaram no mundo dos livros, do conhecimento, como seu amigo Henrique, passa por uma metamorfose e conseqüentemente na sua visão do passado. “Aquilo era importante demais para mim. Eu iria construir uma nova história de minha vida, doravante. Uma história mais bonita.” (MENDES, 2001, p.385). “Só me restava fazer uma releitura e reinterpretação desse mundo. Simples.” (MENDES, 2001, p.400).
O seu “eu” projeta-se agora em busca de uma nova identidade, diversa da qual ele buscou ser quando adolescente, de “grande bandido”. O mundo interior de Mendes é revolucionado pela literatura como ele afirma:

Minha sensibilidade veio á tona, mais aguçada e requintada. Comecei a compor poesias, produzir textos, discutir ideias de profundidade. Logo já estava indagando o que eu era, quem era, por que era, por que realmente estava preso. Tornei-me um feixe de perguntas cujas respostas procurava. [22]

Na narrativa de Mendes o discurso historiográfico mescla-se com o autobiográfico. Temos um legado não só de um ser, de um indivíduo como também de uma coletividade. LAM ao contar sua vida explana para o leitor todo um sistema carcerário falível, deficiente, o método da Policia Militar nos anos 60 e 70, mostra a dura condição e fim daqueles que viveram nesse meio.
É essa oscilação entre o factual e ficcional que concede às Memórias de um sobrevivente um quê de literário além do que se costuma verificar em livros similares. Ainda que o texto possua um pouco de ficcional, o escritor ao final consegue manter uma relação entre o autor, narrador e personagem mesmo que em alguns momentos ele se valeu de artifícios necessários para a concretização da sua obra. No epílogo há uma passagem que Mendes sintetiza seu conceito de transformação:

Ainda sou aquele, mas sou também outros. Sim, embora não acredite muito em mudanças do que somos, julgo mais correto pensar em aperfeiçoamento do que somos através de processo sedimentar. Quer dizer: sempre mudamos, mas funcionamos dentro de um eixo, o núcleo do que somos. A tendência é crescer, nos desenvolver, nos especializar e abranger, ao mesmo tempo.[23]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BERGSON, Henri. “A consciência da vida”. In: Os Pensadores. Trad. de Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Nova Cultura, 1989.

CHARTIER, Roger. “Textos, impressão, leituras”. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, Porto Alegre, v. 3, p. 61-66, 2008.

JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de filosofia. 4ª edição. Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar, 2006.

KOLLERITZ,Fernando. Testemunho, juízo político e história. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 48, p.73-100 – 2004

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 404p.

LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet / Philippe Lejeune; organização: Jovita Maria Gerheim Noronha; tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PENNA, João Camillo.  Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio, org. História, memória, literatura. Campinas: Ed. Unicamp, 2003, p. 324


[1] Discentes do Curso de Letras, turma 2009.2, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de Ciências Humanas e Tecnológicas - Campus XVI – Irecê – BA. dmnazare@gmail.com, bigofsa@hotmail.com, luciana.letras2009@hotmail.com, ludembergpereira@hotmail.com, taisemergulhao1@hotmail.com.
[2] Mestre em Letras (Conceito CAPES 4). Universidade Federal da Paraíba, UFPB. Professor e coordenador do curso de Letras da UNEB – Campus XVI – Irecê. marielcarvalho@gmail.com.
[3] Ao longo de todo o texto esta sigla LAM fará referência ao autor Luiz Alberto Mendes.

[4] MENDES, 2001, p.68-69.
[5] MC´S, Racionais. Sobrevivendo no Inferno. disco;  Copyryght 1997.
[6] MENDES, 2001, p.385
[7]  Luiz Alberto Mendes.
[8] GINZBURG, 2008, p. 61-66.
[9] BERGSON, 1989, p. 191.
[10]“A intenção do livro não foi a de ter uma mensagem. Não tenho essa pretensão.” (MENDES, 2001, p. 414).
[11] “Apenas escrevi para ter uma seqüência que permitisse que eu mesmo entendesse o que havia acontecido realmente”. (idem, p. 414).
[12] PENNA, 2003, p. 324.
[13] (Mendes, 2003, p. 345)
[14] LEJEUNE, 2008, p. 116.
[15] LEJEUNE, 2008, p. 118.
[16] TAUFER, 2007, p. 65.
[17] ECO, 1994, p. 93.
[18] LEJEUNE, 2008, p.27.
[19] MENDES, 2001, p. 134.
[20] LEJEUNE, 2008, p.10.

[21] MENDES, 2001, p. 362.

[22] MENDES, 2001, p. 386.
[23] MENDES, 2001, p.409.

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