segunda-feira, 22 de setembro de 2014

RELAÇÃO ENTRE CURRÍCULO, FORMAÇÃO E SOCIEDADE PRESENTES NO FILME "QUASE DEUSES"

RELAÇÃO ENTRE CURRÍCULO, FORMAÇÃO E SOCIEDADE PRESENTES NO FILME "QUASE DEUSES"


Ludemberg Pereira Dantas
Mauro Jakes Farias de Cruz
Mariza da Silva Cardoso

Em anos recentes, são várias as discussões travadas no campo do currículo e sua relação com a construção de saberes e formação dos sujeitos. Partindo do entendimento amplamente aceito hoje, de que a “formação” é um processo complexo que ocorre em todos os lugares e aspectos da vida, desde o nascimento no círculo familiar, até a cultura social do grupo em que se está inserida e não somente nos espaços formais de ensino, torna-se necessário que o conceito tradicional de currículo seja repensado e analisado de forma profunda, levando em consideração a relevância de outros fatores envolvidos no processo de formação, como por exemplo, a relevância dos saberes construídos culturalmente nos mais variados âmbitos da vida humana.

O objetivo deste presente trabalho será fazer uma conexão entre a Teoria Crítica do Currículo em Giroux (1997) e a relação com as questões de educação, currículo e sociedade presentes no enredo do filme Quase Deuses.

Lançado no ano de 2005, o filme Quase Deuses, de produção de Joseph Sargent trás no seu bojo várias discussões de grande relevância social e de cunho sociológico. A trama se desenrola na década de 1930, período de intensa crise da conjuntura política e social do mundo mergulhado na II Guerra Mundial.

Além de trazer à baila questões como a segregação racial, preconceito feminino, a tensão do ambiente científico de pesquisa e o recorte histórico de uma das maiores crises vivido pelo sistema capitalista, entre outras, o filme provoca uma reflexão profunda sobre o Currículo na educação superior, sua importância e funcionalidade na formação e constituição do sujeito enquanto profissional capaz.
Narrando a história real de Vivian Thomas, um homem negro que sempre enfrentou dificuldade em decorrência do preconceito de raça e que almejava com todas as suas forças entrar na faculdade de medicina, o filme coloca em questionamento até que ponto os conhecimentos organizados em disciplinas estanques no currículo oficial dos diversos cursos de formação acadêmica são mesmo “indispensáveis”, “necessários” e “suficientes”.

O filme trás essa discussão em torno do currículo velada em todo o seu roteiro, ao demonstrar como Vivian Thomas, um homem de grande Inteligência, extremamente autodidata e possuidor de habilidades incríveis, encontra emprego como zelador no laboratório do Dr. Alfred, um médico de renome, especialista e pesquisador na área de cirurgia torácica e traumas no coração e pulmão. Logo as diversas habilidades e qualidades de Vivian chamam a atenção de Dr. Alfred que decide inseri-lo no ambiente de pesquisa e experimentação de técnicas inovadoras de cirurgias cardíacas em cães. De forma surpreendente, Vivian que já possuía conhecimentos e técnicas pré- adquiridos na sua experiência de vida (currículo oculto), absorve-se ainda mais pelo conhecimento científico e lançando mãos dessas habilidades desenvolvidas desde a sua infância (com o pai carpinteiro) torna-se técnico auxiliar e assistente de cirurgia de Dr. Alfred, chegando mesmo a superá-lo na elaboração e estruturação dos esquemas dos procedimentos adotados nas incisões cirúrgicas. Apesar de ter sido a peça principal na execução da revolucionária técnica da primeira cirurgia cardíaca de peito aberto, mais popularizado na história da medicina como a cura da Síndrome do Bebê Azul, o filme mostra em todo o seu roteiro a luta de Vivian pelo reconhecimento dos seus conhecimentos e contribuição no meio da academia científica e médica. O fato de nunca ter frequentado uma universidade e não ter o título de Doutor faz com que todo o mérito obtido pelo sucesso da técnica adotada na cirurgia, método que teve como principal mentor o próprio Vivian, seja na verdade atribuído ao Dr. Alfred, fato que deixa Vivian Thomas completamente decepcionado. Finalmente, apenas depois de muita luta, no fim do enredo seus conhecimentos e méritos são reconhecidos e é concedido a ele o título honorário de Doutor.

De forma profundamente sensível, a história de Vivian Thomas coloca em cheque a relevância e significado dos conhecimentos organizados nos currículos empregados e colocados como essenciais nos diversos cursos de formação. Todos os “doutores” que apareceram na história narrada foram surpreendidos com um simples homem que jamais havia estado no universo acadêmico de uma sala do curso de medicina, e que, apesar disso, revolucionou o campo médico e por que não dizer a história mundial da medicina. Isso faz-nos questionar sobre se os conhecimentos em torno do repasse e assimilação de “conceitos” e “técnicas” frias e sem conexão com a vida prática não seriam o fator determinante na má formação dos sujeitos profissionais e sociais.

Percebe-se, que a aprendizagem do jovem Vivian, se deu fora do que estava estabelecido no currículo do curso de medicina e da estrutura da faculdade. Demonstra que neste caso, o professor subverteu as normas do currículo, o que, segundo Giroux (1997), as “ideologias instrumentalistas”, muitas vezes ameaçam a autonomia do professor, deixando de contextualizar a realidade e de potencializar a capacidade do aluno.

O potencial do jovem, reconhecido pelo professor, confirma o quanto a contextualização da prática educativa favorece a descoberta de novos conhecimentos, confirmando o que este autor determina os professores como “intelectuais transformadores”, (Giroux, 1997), que tem a capacidade de provocar transformações tanto na sua metodologia de ensino, no contexto de sua escola, bem como na sociedade, quando este desenvolve uma prática reflexiva.

Retomando a história real apresentada no filme “Quase Deuses”, entende-se o quanto a prática daquele professor e do estudante provocou transformações importantes naquele contexto. Uma vez que o índice de morte de crianças naquele país por causa dos problemas cardíacos era alarmante, e diante do estudo dos dois pesquisadores, esta realidade foi modificada.
A prática deste professor além de romper com os padrões estabelecidos pela universidade quebra o preconceito vivenciado pelo jovem Vivian, por ser pobre, negro e por não ter passado pelas aulas da universidade. Todavia seu aprendizado transforma aquela realidade de preconceito, descriminação, dentre outros fatores.

Outra afirmação importante de Giroux (1997) é quando ele diz que “o ensino não pode ser reduzido ao simples treinamento de habilidades práticas, mas que, em vez disso, envolve a educação de uma classe de intelectuais vital pra o desenvolvimento de uma sociedade livre,”. Assim sendo, a educação tem um papel importante no processo de transformação das pessoas, independentemente da cor ou classe social. Ela precisa ser experimentada sempre na perspectiva de que todo tipo de ideologia dominante ou de opressão seja quebrada.

Em consideração as teorias de Henry A. Giroux em “Professores como intelectuais transformadores (1997)” percebe-se a grandeza do professor diante o seu papel de ensinar. No filme, é perceptível que um orientador não pode se recusar a receber estímulos para desenvolver habilidades em seu aluno, uma vez que Vivian não detém de uma formação acadêmica necessária para a prática da medicina, e o Dr. Alfred percebe a grandeza intelectual presente no carpinteiro, vinda de muito estudo e dedicação. Isso remete a ideia de que é necessário acreditar no potencial do aluno, uma vez que ele está disposto a aprender e produzir, e recebendo orientações, investimento e credibilidade, se tem grandes resultados.

Quando Giroux defende que o professor tem que desenvolver-se com suas habilidades, sua intelectualidade percebe-se que o crescimento do aluno e seu aprendizado estão além das concepções teóricas, além dos parâmetros exigidos nos currículos tradicionais. Segundo ele:

Primeiramente, eu acho que é imperativo examinar as forças ideológicas e materiais que têm contribuído para o que desejo chamar de proletarização do trabalho docente, isto é, a tendência de reduzir os professores ao status de técnicos especializados dentro da burocracia escolar, cuja função, então, torna-se administrar e implementar programas curriculares, mais do que desenvolver ou apropriar-se criticamente de currículos que satisfaçam objetivos pedagógicos específicos. (1997)

Sendo assim, o filme “Quase Deuses” vem “quebrar paradigmas”, uma vez que um simples carpinteiro é referenciado com sua determinação, persistência e competência. Uma ideologia prática e imediatista chega para afirmar que é possível ir além das teorias exigidas. Não necessariamente Vivian se concretizaria como capaz, se somente tivesse passado por todas as etapas de aprendizagens curriculares, como a conclusão do ensino médio, com estudo da Literatura até a conclusão da graduação acadêmica. Esse exemplo, real, chega para afirmar que os currículos escolares não necessariamente devem ser seguidos à risca, uma vez que o aluno tem capacidade nata de ir além das imposições, dos objetivos específicos.

Um filme extremamente emocionante, de uma realidade que chega para afirmar que é possível e necessário acreditar na educação, no seu crescimento e aperfeiçoamento, com uma sociedade mais justa e igualitária. Com alunos cada vez mais “críticos e reflexivos”, como afirma Giroux, e os professores como “intelectuais transformadores e reflexivos”.


Referências Bibliográficas:

GIROUX, Henry A. Os Professores Como Intelectuais.Porto Alegre: Artmed

Editora, 1997