ENSAIO DOS CORDÉIS: Aposentadoria de Mané do Riachão e O Rádio ABC (Patativa do Assaré).
Do ABC à aposentadoria
Ludemberg Pereira Dantas
Antônio Gonçalves da Silva, dito Patativa do Assaré, nasceu a 5 de
março de 1909 na Serra de Santana, pequena propriedade rural, no município de
Assaré, no Sul do Ceará. Foi o segundo filho de Pedro Gonçalves da Silva e
Maria Pereira da Silva. Foi casado com Dona Belinha, de cujo consórcio nasceram
nove filhos. Publicou “Inspiração Nordestina”, em 1956, “Cantos de Patativa”,
em 1966. Em 1970, Figueiredo Filho publicou seus poemas comentados Patativa do
Assaré. Tem inúmeros folhetos de cordel e poemas publicados em revistas e
jornais. Está sendo estudado na Sorbonne, na cadeira da Literatura Popular
Universal, sob a regência do Professor Raymond Cantel.
Diante a uma inquietude com o estudo da linguagem, buscando estudar
suas especificidades, com novas perspectivas analíticas, passo a me dedicar à
construção desse ensaio com o objetivo de despertar, através de versos
cordelistas, uma visão crítica e reflexiva no que se diz respeito ao
“significado da palavra e reconhecimento da região Nordeste brasileira”.
Ao aproximar-se da chamada Literatura de Cordel não se
pode deixar de pensar na referência Literatura Popular. Está-se consciente da
precariedade de distinções já tão colocadas entre literatura popular e culta,
como é o caso de outras formas de expressão artística, vendo-se sempre aberta a
possibilidade de uma se transformar em outra, sucessivamente. Tem-se, além
disso, a percepção de estar diante de texto-letra, que se oferece como
resultado de um complexo percurso sociocultural, equilibrando-se entre os
andamentos de vai e vem do culto ao popular e vice-versa, em alternâncias.[1]
Vivenciando a literatura em suas diversas formas, tem-se que a literatura
de cordel, bem como uma poesia popular capaz de surpreender e despertar atenção
apresenta o poeta e sua rica característica de glosar. Assim, valoriza-se a
arte do poeta e sua poesia popular nordestina.
Aposentadoria de Mané do Riachão e O Rádio ABC são cordéis de cunho
regionalista, os quais despertam com suas linguagens simples, relatos que
significam um “sertão e um povo sofrido”, quando em consonância a uma imagem
estereotipada de um ciclo da seca, que apresenta uma série de realidades, essas
das quais qualifica e desmitifica suas histórias.
Seu
moço, fique ciente
De
tudo que eu vou contar,
Sou
um pobre penitente
Nasci no dia do azá,
Por
capricho eu vim ao mundo
perto
de um riacho fundo
no
mais feio grutião
e
como alí fui nascido,
Fiquei
sendo conhecido
Por
Mané do Riachão. [2]
Seu Mané do Riachão, homem simples, na
busca de sua aposentadoria, é a representação do homem do Nordeste, vivente do Sertão,
homem do trabalho pesado e da fé. Já em O
Rádio ABC, tem-se a representação desse Sertão que Patativa do Assaré
simboliza como marca dessa vivência marcante, que somente o homem do Nordeste é
capaz de expressar:
Vejo que o nosso
Nordeste
Ê mesmo a terra da fome,
Onde o matuto não veste,
Onde o matuto não come.[3]
Assim, o nordestino é representado
com traços de misérias, fome, injustiças sociais, atraso, revoltas. Durval
Muniz de Albuquerque em A Invenção do
Nordeste e outras artes destaca:
Um Nordeste construído como espaço das
utopias, como lugar do sonho com um novo amanhã, como território da revolta
contra a miséria e as injustiças. Um lugar onde a preocupação com a nação e com
a região se encontrava a preocupação com o “povo”, com os trabalhadores e com
os operários. [4]
Contudo, uma imagem estereotipada esconde o nordestino como ele
realmente é. Um povo, que na sua humilde realidade é dono de diversidade,
cultura e raça. A linguagem presente em cada palavra, seja ela rítmica ou não,
surge da necessidade de um “ABC” para nosso povo pensar:
Pranta com munto
prazê,
Com munta sastifação,
Proque no rádio ABC
Que comprou de prestação
Todo momento que liga,
Além de munta cantiga,
Escuta uma voz falá,
Uma voz dizendo: «prante,
Que o governo garante».
E o seu desejo é prantá.[5]
Esse nordestino carente, plantador, vivente da seca, trabalhador da
enxada, do plantio, do pôr do sol, sustentado do feijão e do mungunzá, cheio de
fé e esperança, necessitado em sua linguagem, é vítima do “Poder do Estado”, esse
que usa da alienação, da falsa ideologia, deixando-os a mercê de dias melhores:
Este rádio é
mentiroso!
Eu só vendendo este diabo![6]
Sempre entrano pelo cano
E sem podê trabaiá,
Com sessenta e sete ano
percurei me aposentar,
Fui batê lá no iscritoro
Depois eu fui no cartoro
Porém de nada valeu,[7]
A certeza de uma vida sofrida, da desilusão. Assim prega-se também o
nordestino: homem forte do Sertão. Lugar de estereótipos construídos como
essenciais. Perguntas que não querem calar, com seus problemas sempre em foco.
Um Nordeste rebelde, bravo, primitivo. “Como as palavras se relacionam com o
mundo?” Tudo na linguagem é uma questão de falante e contexto. Com isso,
percebe-se nos presentes cordéis a presença/ausência de uma linguagem, essa da
qual significa o nordestino bravo e também carente; um Sertão rico e ao mesmo
tempo pobre.
Veja que negoço
chato,
O que foi que aconteceu,
Vendeu o argodão barato,
Que tanto trabaio deu!
Aquele bom camponês,
Com as comprinhas que fez,
Nem um centavo sobrou,
Ficou de bôrsa vazia,
Pensando na garantia
Que o rádio tanto falou.
Sem tê no borso um tostão
Vorta o caboco da praça
Pensando em seu argodão
E incabulado, sem graça,
Quando chega na paioça,
Vai derruba nova roça
Pra ôtra safra fazê,
Bem sisudo, resmungando,
Chingando e desconjurando
Aquele rádio ABC.[8]
O sujeito constituído da
falta de linguagem, se deixando levar pela falsa pregação, torna-se “uma peça”
de um sistema impiedoso. Assim, faz-se necessário o domínio prévio de uma
informação, com uma busca incessante da palavra, do seu significado. Em busca
de sua aposentadoria, seu Mané do Riachão se depara com tanta burocracia que
acaba vivendo sem o seu direito que lhe é garantido por lei:
Veja moço, o
grande horrô
Sei que vou morrer depressa
Bem que a cigana falou
que eu nasci foi de trevessa
Cheio de necessidade
Vou viver da caridade
Uma esmola cidadão
Lhe peço no santo nome
Não deixe morre de fome
O Mané do Riachão[9]
Assim, Patativa do Assaré mostre uma literatura de cordel com uma
poesia popular nordestina de um caráter encantador. Valoriza a arte de
escrever, junto com ela, sua intensa capacidade analítica, expressando uma
linguagem rica e promissora. Nota-se nos cordéis citados, a existência da
oralidade, essa a qual permanece fixa em cada verso, juntamente com a rica
combinação de rimas métricas específicas, dando embelezamento e sutileza ao
estilo desse grande poeta de nossa cultura nordestina brasileira.
REFERÊNCIAS:
FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel: o Passo das Águas
Mortas. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1993;
JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. A Invenção do Nordeste e outras artes. In: Capítulo III,
Territórios da Revolta. Editora Cortez, 2006;
http://opovonalutafazhistoria.blogspot.com.br/2011/06/o-radio-abc-patativa-do-assare-poesia-e.html;
https://sites.google.com/site/joaomarialopes/poesia-1.
Nenhum comentário:
Postar um comentário