quinta-feira, 22 de março de 2012

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO


Livro: Memórias de um sobrevivente - Luiz Alberto Mendes

Ludemberg Pereira Dantas ¹

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO

Referência bibliográfica:

MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das letras, 2009. Capítulos 22 e 23.

Eis posicionamentos importantes, citados pelo autor, sobre sua transformação como indivíduo em um mundo envolvido pelo crime, pelas drogas, e uma descoberta de salvação e refúgio para com os livros, descobrindo na literatura ponto forte de autoconhecimento e liberdade. Levando-se pela memória, pelo testemunho, pela autobiografia, deixa claro que tem o objetivo de defender as causas e debater as temáticas para assim, oferecer ao leitor, caminhos e novos encontros:

“O novo amigo falava em livros, contava-me romances que lera, falava em poesia, filosofia, um monte de coisas novas. Foi a primeira pessoa do mundo fora minha mãe, em que depositei confiança total e irrestrita”. (p.380);

As histórias dos livros que contava, era extremamente fascinantes e belas. Ensinou-me a valorizar livros, a querer conhece-los todos. Agora ensinava a sair do castigo para começar a ler aquelas histórias de que ele falava. Era poeta, e eu também quis ser poeta. Prometeu ensinar-me”. (p.380);

“Passamos três meses no mesmo encanamento de privada, conversávamos todo o tempo que nos era possível. Havia tanto assunto... Conversei mais nesses três meses do que em quase toda a minha vida. Seus conceitos, nobreza de propósitos, sua visão moral diversa daquela que aprendera no meio criminal, me falavam ao coração”. (p.380);

“– Henrique Moreno: uma das pessoas mais importantes de minha vida. Esse presidiário: cumpriu 30 anos de prisão, continuou ladrão e a policia o matou. O Henrique na sela começou a me falar de livros: era poeta, gostava de poesias, de palavras e tal. Quando saí do castigo, esse cara me mandou duas pilhas de livros desse tamanho...” (Vídeo: Provocações Luiz Alberto Mendes);

“– Não tinha o que fazer. Eu estava ali trancado, só tinha o livro e eu. Comei a ler 20 minutos, 30 minutos, 40 minutos, daí começou a acelerar o negócio, ai comecei a ler 12 horas, 14 horas, daí quando apagava a luz eu ia ler com vela, arrumava uma espia (luz de fora, do buraco da fechadura da porta), e ficava projetando uma luz para ler, desesperadamente, daí nunca mais parei, até hoje...” (Vídeo: Provocações Luiz Alberto Mendes);

“Já estava começando a falar sozinho (aliás, descobrir depois, a maioria dos presos fala sozinho), meio abestalhado, sofrendo uma depressão cada vez mais difícil de suportar. A masturbação era a única fuga. Já não tinha amigos com quem conversar”. (p.383);

“Mas poder estar em uma cela com janelas, ver, ouvir, conversar com pessoas, ter acesso a livros, saber o que acontecia, receber ar, enfim, relacionar-me coma a vida, era maravilhoso!”. (p.384);

“Dia seguinte à minha saída da cela, logo cedo, veio um companheiro lá do terceiro pavilhão, com dois pacotes enormes. O Henrique havia me mandado uma pilha de livros, cadernos com poesias e textos dele, papéis, canetas, a carta-rascunho para minha mãe e uma carta dele mesmo. Aquele foi apenas um dos inúmeros atos de amizade dele. Emocionou-me. Fiquei muito feliz em possuir um grande amigo”. (p.385);

“Olhei e namorei livro por livro, caderno por caderno. Aquilo era importante demais para mim. Eu iria construir uma nova história de minha vida, doravante. Uma história mais bonita”. (p.385);

“Toda semana lia quatro, cinco livros, e preferia os volumosos. Não podia sair da cela, então lia o tempo todo. E que delícia era o mundo dos livros! Cada viagem... Fumava um baseado e ia fundo, viajando da prisão para países estranhos, pessoas diferentes, mundos inteiramente diversos e fascinantes”. (p.385);

“Fui me apaixonando por livros. Lia, em média, oito a dez horas por dia. Comecei com os romances. Li todos os clássicos como quem devora o prato mais saboroso. Era extremamente gostoso, um prazer especial, diferente. Não estava mais tão só, as histórias, os personagens ficavam vivos para mim num passe de mágica. Só que, a cada livro terminado, dava uma angústia, um aperto no coração que jamais consegui explicar. Era livro atrás de livro, meu mundo se ampliou de tal modo que às vezes dava pane mental pelo acúmulo de informações”. (p.385);

“Fui ampliando meu vocabulário e, a partir dos romances, comecei a me interessar por livros mais profundos. As relações criminosas já não me satisfaziam mais. Pouco tinha a me acrescentar. O submundo do crime começou a me parecer estreito, limitado, e eu já não cabia mais só ali. Voava alto, conhecera novos costumes, novos países, novas relações com a vida”. (p.386);

“Minha sensibilidade veio à tona, mais aguçada e requintada. Comecei a compor poesias, produzir textos, discutir ideias de profundidade. Logo já estava indagando o que eu era, quem era, por que era, por que realmente estava preso. Tornei-me um feixe de perguntas cujas respostas procurava. E era uma puta duma dificuldade, principalmente por não ter com quem conversar sobre minhas dúvidas. E no estágio que eu alcançara, não dava para aceitar respostas comuns ou fáceis”. (p.386);

“Podia, principalmente, conversar sobre livros, procurar novos livros, enriquecer minha vida com mais histórias, com outros mundos”. (p.386);

“Aprendera a respeitar o sofrimento de cada um. Estava, finalmente, saindo da adolescência e sendo um homem. Sofria minha solidão, o desespero de ser jovem, saber da vida colorida e iluminada lá de fora e não poder participar. Sofria o fato de só ter minha mãe por mim. Sofria as quatro paredes, a angústia de existir pela metade e a certeza de um futuro negro no meio da estupidez e da miséria humana. Imaginava que cada companheiro passava por isso também, e como tinha dó de mim, tinha dó deles também. Eu estava me modificando muito, e muito rapidamente. Não compreendia, mas o sofrimento dos outros me afetava profundamente e eu estava pensando sobre tudo, cada fato: cada movimento era razão para reflexões, ponderações...”. (p.388 e 389);

“Precisava era de livros. Eles me bastavam, sempre me salvaram, daí para a frente passei a ler noite e dia, tentando economizar páginas como um contrabandista. Acabei com os romances, e só me restaram livros mais profundos e complicados. Exigiam mais concentração e cansava rápido a mente”. (p.394);

“O supletivo ginasial era à noite. À noite não me deixavam sair porque minha pena se aproximava de cem anos. A diretora não permitia por questão de segurança. Também, a lógica deles era assim: para que quer estudar se vai ficar preso a vida toda? Decerto deve estar com algum plano de fuga ou coisa assim. Sem chances”. (p.394);

“Já no tempo em que frequentava as aulas, pude conhecer a biblioteca e me enamorei por aquele lugar maravilhoso. Coloquei na cabeça que devia arrumar um serviço para mim ali e, a partir daí, comecei a lutar por isso”. (p.394);

“A vida para mim era uma sofrença continua. Viver era uma merda, para dizer a verdade. Eu era um jovem que ao escutar as músicas que curtira nos bailes ou quando em liberdade, chorava. Mas não de tristeza, e sim de revolta. Tudo me parecia ter sido negado, e o que fora bom, ao ser lembrado, só me causava ódio no coração. Odiava a humanidade, todos os que estavam do lado de fora da muralha eram meus inimigos. Tecia castelos de ilusão de um dia sair e me vingar. Mataria tantos quantos pudesse, derramaria o sangue de qualquer um que ficasse em meu caminho. Mesmo preso, estava preparado para estraçalhar quem quisesse me testar”. (p.396);

“De bandido-homicida-latrocida, quis ser cidadão honesto e ate meio santo. Larguei maconha, cigarro, malandragem, contatos no meio criminal, ate os amigos envolvidos no submundo aos poucos fui abandonando. Não havia mais afinidades. Dei uma virada total em minha existência”. (p.400);

“O que acontecia comigo era simples. Possuía um conhecimento do mundo, ao aprender a ler e assim entender melhor esse mundo, tal conhecimento não se sustentava. Só me restava fazer uma releitura e reinterpretação desse mundo. Simples”. (p.400);

“Depois fomos para Jorge Amado, Mário Palmério, Machado de Assis, José de Alencar (famoso Peri e Ceci, tranquilamente), Clarisse Lispector (que me confundiu muito com sua modernidade), Nelson Rodrigues, e muitos outros. Estudamos nossos maravilhosos poemas e, além de Drummond, Quintanda e o maravilhoso Vinícius, elegemos o maior de todos para nós em língua portuguesa, o grandioso Fernando Pessoa. “O poeta é um fingidor... ”. (p.401);

“Não me importava muito com a verdade. Meu negócio era acumular conhecimento, pois acreditava que isso me valorizaria para os outros. Eu carecia de importância, e queria chocar com um tal volume de conhecimentos e informações que me destacasse da minha condição prisional”. (p.406);

“Lia livros complexos, como, por exemplo, O Ser e o nada de Sartre (por quem fui apaixonado), ou qualquer livro de Hegel, no original ou em português, em questão de horas. Assimilava cem por cento e em seguida já estava ensinando, discutindo e discursando a respeito. Eu demorava semana e às vezes mês para conseguir entender e concatenar o que lia, e só assimilava trinta, quarenta, no máximo cinquenta por cento, e me sentia realizado. Era, sem dúvida, uma mente privilegiada. Aprendi muito com ele e me arrependo de não ter aproveitado mais de sua capacidade de ensinar. Orgulho é foda! ”. (p.407);

“O crime, a malandragem, a ideia que perseguira desde a infância, de ser bandido, malandro, foram se afastando do meu foco de visão. Agora aquilo era muito pouco para mim, diante dos horizontes que divisava. A cultura, o aprendizado, levavam-me a fazer uma releitura do mundo. Havia um lado melhor, e eu queria pertencer a ele. Claro, a cultura do crime que assimilara desde a adolescência ainda era, de certa forma, dominante em mim, mesmo que então não conseguisse perceber. Estava no meu sangue, nos meus ossos, demoraria a vida toda para conseguir um certo equilíbrio com a cultura social”. (p.407);

“Se educação não servir para mais nada, pelo menos para uma coisa serve: para a gente gostar de quem a tem”. (EPÍLOGO).


¹ Discente do Curso de Letras, turma 2009.2, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de Ciências Humanas e Tecnológicas - Campus XVI – Irecê – BA. ludembergpereira@hotmail.com.

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